Narrativa
Uma das minhas primeiras lembranças vem de quando eu tinha cerca de três ou quatro anos de idade. Estava na casa de meus padrinhos e, de repente, no rádio, soava uma voz estranha repetia algo extremamente familiar: eu ouvia, pela primeira vez, minha própria voz. Meus padrinhos haviam me gravado poucos minutos antes, me perguntando coisas básicas como o meu nome, a idade, o que eu estava fazendo e outras brincadeiras. Por muitos anos eu guardei essa gravação. Na minha adolescência, na impossibilidade financeira de comprar todos os álbuns das minhas bandas preferidas, colecionava todo tipo de fitas gravadas: de rádio para fitas, de discos de vinil para fitas, de fitas para fitas, e posteriormente de CDs para fitas . Cheguei a ter mais 400 fitas com as mais variadas gravações, todas organizadas em ordem alfabética, segundo ordem de lançamento dos álbuns, até que eu tivesse dinheiro suficiente para comprar o álbum em sua versão original (que, por vezes, também era comprado em formato de fita). Mas a gravação com minha voz, aquela era sagrada. Não a ouvia, mas tampouco tinha coragem de apagá-la regrando algo por cima. Anos depois, durante minha graduação em História, uma ideia: meu trabalho de conclusão de curso seria sobre pirataria musical. Mas não a pirataria óbvia, de CDs copiados vendidos em camelôs no centro de São Paulo. Eu queria falar da pirataria caseira, daquela que eu mesmo praticava, aquele modo artesanal de cópia, verdadeiro e prático exemplo do do-it-yourself. Mal imaginava eu, na ocasião, que a pesquisa seguiria evoluindo e se transformaria em minha dissertação de mestrado. Como celebração pelo título acadêmico, fiz (mais) uma tatuagem. A fita representando minha história como fã de música, e, na etiqueta da fita, o título da dissertação simbolizando minha história acadêmica. E quanto a gravação com minha voz quando criança? Essa, infelizmente, se perdeu há tempos. Mas a lembrança auditiva segue viva, forte, cravada na pele e no diploma...