Narrativa
Não me lembro como consegui esse lápis, ele simplesmente apareceu e por mais que eu tente lembrar não há nem um pequeno vestígio de sua origem. Saber de onde ele apareceu não importa, afinal quem consegue lembrar e identificar depois de tanto tempo como um objeto tão insignificante foi obtido? Ao mesmo tempo acho que alguém colocou este lápis na minha bolsa num lapso, o mesmo lapso me fez esquecer outros lápis e vários outros pequenos artefatos de papelaria em diferentes locais durante minha vida. Ninguém chora, só se aceita a perda. Esse lápis já me veio com marcas, veio com uma meia vida e uma ponta quebrada e só o vi nas minhas coisas quando não pude mais sair de casa. Durante esses meses de 2020 tenho escrito mais que nunca e minha mão tão acostumada ao digitar do teclado voltou ao papel e as canetas e lápis, escrever à mão transformou-se num ritual diário de encontro. Escrever essas páginas se tornou um local seguro para falar sobre meus sentimentos durante esse período e durante um mês inteiro esse lápis me acompanhou nesse processo, a escrita macia fazia correr meus pensamentos na mesma velocidade que a escrita, é como um abraço de cetim que envolve e nos amacia. De tanto o usar ele se desgastou e com o tamanho mínimo não o consigo usar para a escrita, a última página escrita já sabia o fim: não o teria mais como companheiro. Ele ficará aqui em casa por mais um tempo, gosto de olhar pra ele e lembrar da sensação de escrever macio, corrido e fluído o que vier na minha mente sem freios. Sei que em breve terei que enterrá-lo no jardim, quem sabe ele não renasce e apareça novamente em minha bolsa?