Narrativa
O tempo livre em casa precisava enfim de um destino. Desisti da mudança, que me exigiria contratar profissionais que não poderia pagar e apostei em uma arrumação, uma faxina das boas. Minimalismo, troca de energia. Sei lá, vai que apostar na good vibes funciona agora. Estava triste, é verdade. Cá pra nós, há alguém 100% são 100% bem? Duvido! Assim como desconfio de quem não gosta de sobremesa, de quem menospreza a embriaguez ou quem maltrata animais. O alto astral é flagrante de mau caratismo. Volto ao meu armário. Em meio a roupas que nunca gostei, com tamanhos que nunca me serviram, encontro uma caixa de sapato velha. Nossa, olha eu que louca, guardando sapato junto com roupa. Abro e me surpreendo. Há tecido dentro. Um pano amarrotado, riscado, há indícios de um crime. Será que eu guardo vestígios de um plano secreto. Junto à naftalina, sobe o cheiro do pastel de queijo que vendia no recreio da minha escola. Acho estranho. Lembro que havia um tempo em que não importava a gordura trans. Lembro que também tinha amigos, aglomerava. Lambia o mesmo pirulito e fazia pactos de amizade com cuspe (mais radicalmente com sangue). Tudo isso com cheiro de naftalina e de tecido velho. Não era qualquer tecido, era o tecido que contava a minha história. Os meus primeiros amores platônicos, minhas lealdades que duravam a próxima estratégia do jogo. Não lembro bem dessas pessoas que fizeram minha história. Nem sei onde podem estar no mundo. Vi no Instagram que a Rafaela, da turma B ficou grávida nesses dias…. Nem tenho intimidade para dar parabéns. As memórias parecem todas amarrotadas, com buracos maiores que as traças conseguiram fazer. Mas elas me transportam. Lembro de um tempo. Não sei se quero voltar, mas, certamente, sei que nele vivi.