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A Bandeja
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Título
A Bandeja
Narrativa
A BANDEJA (contém lágrimas) Sei lá em que brechó minha mãe comprou aquela bandeja de inox redonda, bonita, pesada e brilhante. Eu vivo entre memórias de infância, conviver com crianças me convida todo tempo a rememorar. Nessa quarentena,distante das crianças há meses, sobrou tempo para olhar pra uma das fases mais importantes da vida. Nesse intervalo entre infância e adultez, tem uma adolescência e uma bandeja de inox redonda, bonita, pesada e brilhante. Nesse intervalo tem uma menina que acorda cedo, lava o chão do bar ouvindo um pagode, vai ao mercado, vende umas doses de cachaça e de tempos em tempos, reveza com a irmã as tarefas da cozinha ou do atendimento. E assim, no revezamento, eu com 12 e Elaine com 14 anos, fomos aprendendo o ofício a ponto de tocar um dia de trabalho da pensão na ausência da minha mãe com comida fresca, gostosa, pontual e clientes satisfeitos. Nesse intervalo entre infância e adultez tem uma menina que deixa tudo pronto, toma banho, leva a bandeja, penteia o cabelo, recebe um cliente, outra bandeja, fecha uma conta, veste o uniforme, mais uma bandeja, pega a mochila, beijo na mãe, bandeja no balcão, corre para a escola.Bandeja pra lá, bandeja pra cá. O que a senhora deseja? Trabalhamos com refeição, quentinha, prato feito, aperitivo, salgadinho. Me vê uma dose de 51! Uma dose de Zangão! Uma dose de Dreher, a cachaça mais cara. Conhaque. Deus me livre derrubar aquela garrafa no chão. Ou por que não um traçado? Cerveja gelaaaaada! Refrigerante? Também temos! A diversão fica por conta da sinuca. Treinada desde os seis anos, a mesa era nossa, desafiava o cliente, ele perdia, eu cobrava a ficha e de 50 em 50 centavos a caixinha de moedas ficava cheia. Quem tem um bar na família sabe bem do que estou falando! A louça desse período era de entrar a madrugada... Enquanto escrevo me pergunto por que olho tão pouco para esse período da vida… Passou voando! Final de semana tinha diversão, liberdade, dinheiro para curtir. Nem sempre tinha disposição, mas tinha grana, e eu vivi bem essa fase! Acabo de lembrar que nos sentíamos realizadas quando elogiavam nossa comida. Vez ou outra aparecia uma criança que dizia: "É a melhor comida que eu já comi.", elogio de criança deixava minha mãe ainda mais honrada. Os clientes, encantados com o tempero da minha mãe viviam questionando sua naturalidade: "A senhora é baiana?" Ao que ela prontamente respondia: "Sim! Sou de Caravelas!" Nunca botou um pé na Bahia! Mas a conversa seguia com uma lábia que todo dono de birosca tem! "A senhora é mineira?" "Sim! De Leopoldina! " Eu olhava aquilo e ria por dentro. Doida, doida, doida, eu pensava. Hoje, olhando pra essa temporada da vida, eu vejo o quanto aprendi. Aprendi seu tempero, sua mania de picar o alho, seu arroz soltinho... aprendi com sua exigência de uma louça bem lavada, de uma panela bem areada. Aprendi que elogio de criança vale mais que de dez adultos. Aprendi que organização e planejamento são imprescindíveis para um negócio, não foi à toa que você faliu. Aprendi com aquele portão aberto para todos a respeitar e impor respeito a todas as pessoas, por mais bêbadas que estejam. Rsrs Mãe, eu aprendi tanto com esse período da nossa vida! Nunca pensei que pudesse te agradecer por ter sido tão louco! No seu testamento, coloca a bandeja de inox redonda, bonita, pesada e brilhante no meu nome, por favor. Entre ser obrigada a enfeitar criança em data comemorativa e retomar nosso tempero carioca, mineiro, baiano, eu fico mil vezes, com o tempero!
Descrição da Imagem
Bandeja de inox redonda.
Doador
Iacy Carvalho Ferreira dos Santos


