Narrativa
Janeiro de 2019. Primeira vez que entro em contato com a minha menstruação. Ignorar já não é mais possibilidade. Sinto-a com receio e desconforto. Teria sido má ideia ter comprado um coletor menstrual quando posso ir até o supermercado, comprar absorventes descartáveis e tentar fingir que o meu período menstrual não existe? Talvez seria. Talvez eu não precisasse me adaptar às maneiras de introduzi-lo ou ter que responder aos comentários em tom de nojo e de repulsa. Talvez eu não precisasse me conhecer melhor. Entre tentativas, erros, desesperos e descobertas, consigo encaixá-lo da melhor maneira em mim. Segundo mês de uso. Talvez seja interessante oferecer às plantas os meus nutrientes, evolvendo à Terra o que ela me entregou até hoje. Transformar morte em vida. Sem jeito e ainda iniciante, ofereço à minha roseira, sincera e delicadamente, o meu sangue. Nutra-te e eu estarei grata, somente grata. Um ano de uso. Os meus ciclos se repetem? Talvez anotar as minhas fases seja um caminho que me ajude a entender quando meu sangue sai. E não só isso... Entender que sou estresse e sou calmaria. Sou produtividade e sou descanso. Sou luta e sou prazer. Sou donzela e sou anciã. Sou mãe e sou feiticeira. Sou cíclica e não nego a minha natureza. Eu sou a natureza. Março de 2020. Um ano e dois meses de uso. Pandemia. Paralisação de todas as minhas atividades diárias. Reclusão. Rotina virada ao avesso. Retorno à minha cidade natal. Retorno aos traumas e aos sentimentos com os quais eu não estava preparada para lidar. Retorno à mim mesma. A vida me força a reduzir a velocidade e eu reluto. Ela me força a olhar para dentro e eu finjo que não a ouço. A vida me encosta na parede e me faz perceber que, se eu não escutar a mim, eu vou sofrer cada vez mais. Olho para a realidade concreta e vejo que a cura, antes de ser compartilhada e disseminada no mundo, parte de dentro. Realidade e consciência dialogam numa tentativa de me fazer refletir sobre o eu e o outro. Sem consciência de mim, do que estou sendo, do que sou no mundo, do que sou para o outro, não consigo projetar a minha melhor versão para mim mesma - nem tampouco para o mundo. Aprofundar-me em mim é conhecer as minhas partes e abraçá-las. É questionar os porquês de eu não gostar das sombras ou das luzes que me constituem. É escrever minhas dores para deixar de fingir que elas não existem e amenizá-las. É escutar minha intuição. É escutar meu corpo e dar voz para que ele se comunique comigo. É entender que meu sangue sai para que o novo ciclo entre. É observar minha ciclicidade e perceber - eu me respeito. É, enfim, aproximar-me de mim para que eu possa me aproximar do outro e me unir a ele, sem falsa generosidade, sem superficialidade, sem medo.