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Cacto Furado e Chá de Camomila
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Título
Cacto Furado e Chá de Camomila
Narrativa
A história do cacto furado é difícil de contar, porque vem de coisas vividas que foram difíceis, coisas que tem a ver com a história do chá de camomila. Vou começar a contar pelo meio do caminho, na noite do tal chá, num lugar bem distante daqui, mas não fisicamente falando. Fisicamente falando, seriam apenas 976 km de distância (da minha casa até o Hospital das Clínicas da USP, pela BR-101). O lugar distante que me refiro é meio que um pântano emocional, escuro, úmido e monótono. Há
quase exatamente 1 ano, eu fui a São Paulo, porque era a semana do aniversário do meu pai. Ele comemorou num quarto grande, no quarto andar de um prédio enorme cheio de passagens ilógicas desenhadas por rampas, corredores, elevadores e escadas que o interligavam a outros prédios igualmente grandes e labirínticos. Depois de 9 meses de seguidas internações aqui em Vitória, lá em SP minha mãe e irmã que se revezavam para acompanha-lo já há uns 3 meses. Eu fiquei sozinha em casa por causa do trabalho e ia para São Paulo nos feriados, fazia tempos que não era acompanhante e na minha primeira noite na viagem desta vez, eu já estava exausta, sem nem um pingo de energia como se fosse minha trigésima noite consecutiva no hospital. Meu pai também estava exausto, a dois dias de completar 1 ano de internações e 59 anos de vida. Depois de meses de gentilezas, simpatia, tentativas de bom humor com todos que trabalhavam ou dividiam quarto com ele, de força e esperança consigo mesmo e de silêncios e esforço de conversa conosco, nesta noite ele queria apenas ficar quieto, imóvel e calado. Não sei se você já experimentou a sensação de estar chegando no limite de algo, eu imagino que cada um sinta esse momento chegar de formas diferentes, eu não sei como meus pais e minha irmã sentiram, mas sei que estávamos todos mais ou menos nesse ponto, quase no limite. Para mim essa sensação se configurou num total apagamento de tudo ao redor. Adormecimento do bom e do ruim. Você apenas está ali. Inerte, cansado, desligado de qualquer conexão com qualquer coisa. Lembro que eu fazia a pé o caminho do apartamento que estava hospedada até o hospital e que eu tentava restabelecer a conexão, acordar. (Gosto muito de viajar principalmente para andar pelos lugares. Não quero dizer visitar cidades ou paisagens incríveis, quer dizer isso também, mas digo só andar para ver. Qualquer lugar desconhecido serve) E eu tentava evocar esse hábito no caminho para o hospital, eu escolhia ruas diferentes, via novas vitrines, árvores, portas e janelas bonitas, jardins, placas, pinturas, muros, na intenção de acordar o olhar, acender as luzes, ver novamente. Só que não funcionava, eu até via, “olha bonito isso, diferente aquilo, interessante...”, mas essa beleza não ressoava mais em lugar nenhum, entrava em mim, topava um quarto vazio, oco, batia nas
paredes e voltava para fora, sem provocar absolutamente nada, meu olhar estava quebrado. Naquela noite, no quarto escuro, silencioso, frio de inverno paulista, o que senti não foi nem que o olhar estava quebrado, porque quebrado conserta. Senti que eu o tinha perdido mesmo. Desesperança total. Conhece essa sensação? Eu definiria como
uma angústia apática, apática porque angústia me remete a inquietação e eu não me sentia inquieta, não havia movimento nenhum. Era só uma apatia de quem tá chegando no limite de suportar algo. Quando deu 22h, uma moça bateu à porta trazendo a ceia. Meu pai reservava esse lanche para comer junto com o remédio que vinha sempre à meia-noite, numa tentativa de agredir menos seu organismo (o que para mim àquela altura não fazia mais o menor sentido, mas ok). Quando a enfermeira entrou com o remédio duas horas depois, meu pai perguntou: o que veio no lanche hoje? Biscoito e chá. Biscoito salgado? Não, doce, tipo maisena. Com uma cara de leve desapontamento acrescentou, hum tá, me dá só o biscoito e água, pode tomar o chá, você. Eu me lembro de entregar as coisas para ele, esperar de pé ao lado da cama (os segundos de assistir uma pessoa engolir sei lá o 50º comprimido do dia são longos), pegar o copo jogar na lixeira e voltar para a minha cadeira reclinável cheia de cobertores. Eu sentei e encarei por um tempo a mesinha com o copo de chá. Não tinha nada de novo, nada de belo, de interessante, emocionante acontecendo, aparentemente seriam só mais alguns segundos de vida que passam e vão direto para a lixeira da nossa memória. Mas, por alguma razão, o que eu senti ali me marcou, eu peguei o celular e
escrevi no bloco de notas 20 linhas sobre essa sensação de desesperança, algo bem depressivo sobre como a vida de tudo nesse planeta é um monte de fios embolados, cheios de nós, sem ninguém interessado de verdade em organizar, rs. Acho que me marcou porque foi um momento de clareza, não de raciocínio claro lógico linear, mas
uma clareza de viver o que está sentindo, de encarar aquele sofrimento. Enfim, guardei o celular e o chá continuava em cima da mesinha, resolvi tomá-lo e continuei divagando de uma forma mais consciente, verbalizando, como se eu estivesse escrevendo ainda. Voltei para a cadeira, com o chá na mão, já estava frio óbvio, tomei o primeiro gole, era de camomila. E pensei, se hoje fosse o último dia de vida do meu pai, a última coisa que ele comeu seria esse biscoitinho sem graça, que ele preferia que fosse salgado. Ei! E se hoje fosse meu último dia? Eu tive esse chá, frio, de camomila (sou uma pessoa de poucas exigências e com o paladar bem democrático, são raríssimas as coisas que eu não gosto. De todos os sabores de chá possíveis, camomila é o que eu não gosto. Foi justamente ele que veio, e eu tomei). Provavelmente eu
adicionei um “que bosta ein” em pensamento, mas depois percebi uma coisa que pode parecer bem óbvia se você pensar racionalmente, mas é algo bem no caminho oposto de óbvio e fácil quando se trata de se pensar sentindo-sabendo. Percebi que a vida (é louca, nem vou me dar ao trabalho de explicar ou de entender por completo), mas ela
não é sobre o que você faz nos últimos minutos, nos últimos dias, no último ano, sobre o que você faz no final. Não é sobre quem você era ou em qual emprego, relacionamento, casa, cidade você estava por último, antes de morrer. Todos os dias tem alguma importância, desde que você esteja de fato naquele dia, naquele emprego, naquele relacionamento, naquela casa, naquela cidade, naquela vida, a ponto de conseguir enxergar. Eu não estou falando de “viver no presente”, de certa forma é isso também, mas é algo como experimentar o que você tem agora, vai ter coisa boa e ruim, vai ter memórias do passado e ideias de futuro misturados ali no meio, vai ter dúvidas e certezas, vai ter biscoito maisena, chá frio, café quente, vinho, água de coco, sorvete de menta com casquinha de chocolate. Cada dia vai ter uma coisa, ou mais de uma, mas elas vão durar só um dia. E enquanto a gente se recursar a experimentar, até aquilo que a gente não gosta, a sensação que eu fiquei, é que é aí que não há vida, onde não estamos vivendo. Meu pai teve alta no final daquele ano, 2019. Em janeiro voltamos a São Paulo para exames de controle, que tiveram resultados excelentes. Ele continuaria em tratamento, mas em fim tínhamos esperanças. Em março veio a pandemia no país, e à medida que as informações chegavam percebemos que para o meu pai com as especificidades do seu tratamento o covid seria fatal. Então, meus pais foram para o interior, numa casinha emprestada pelos tios da minha mãe. Na minha segunda
acompanhar a cronologia da coisa, então recapitulando: meu pai ficou doente exatamente no dia da sua festa de 58 anos, no aniversário de 59 ele ainda estava em tratamento no hospital em São Paulo, e agora, ao completar 60 anos ele estava de volta em casa, junto com um cactozinho furado, que também quase morreu, e que abre uma flor que dura só um dia. A flor abriu na noite de 24 de junho de 2020, bem no dia do aniversário de 60 anos do meu pai. No outro dia a florzinha já estava morta, mas espero que a essa altura você já tenha entendido que abriu uma nova em seguida... Acho que ficou meio confuso, mas eu avisei que talvez não estivesse totalmente pronta para explicar como a história do chá de camomila e do cacto furado se conectam. Se você conseguiu chegar até aqui e encontrar sentido, me manda um oi! rs
Descrição da Imagem
Planta tipo cactos na cor verde com duas flores brancas que desabrocharam e quatro na cor amarela que ainda não.
Doador
Naathália Vargas