Narrativa
Nesse longo tempo em casa, olhar para a casa foi uma das coisas que nos restou. Eu não sabia, mas tive tempo de aprender durante essa quarentena, que eu já tinha isso como hábito há muito tempo. Poderia reconstruir em detalhes um apartamento que meus avós moraram por muitos anos na minha infância. Os objetos, móveis e fotografias me inspiravam algo de familiar, de história acumulada e sendo contada ao mesmo tempo, mas também me inspirava uma sensação de aventura. Talvez pela pedra de rio alaranjada que segurava a porta da cozinha, porque eu não sabia de qual rio ela tinha vindo. A concha grande que minha avó nos ensinou em segredo que era para ouvir o mar. A tapeçaria de cavalos correndo sob um fundo azul, eu imaginava o que fazia deles serem tão livres. O espelho circular com moldura de couro em formato de sol que ficava no corredor, quem sabia fazer aquele tipo de trabalho detalhado no couro? O quartinho de costura, com caixas de carretel de linha, caixas de retalhos, caixas de papel de corte, caixas de tecido, e as peças de argila secando nas folhas de jornal. O quanto de coisa seria possível serem criadas ali? A exuberância de pratos estampados com flores grandes em tons de vermelho, amarelo e verde. Enfim, essa casa tinha essa parte da aventura que me fazia, imaginar, olhar para fora, mas equilibrava muito bem com uma parte familiar, de conhecer, olhar para dentro. Os álbuns de família e os de viagem dos dois depois que se aposentaram, o rosto dos netos e netas nos porta-retratos da estante. A mesinha de centro que a gente usava para comer abacate com açúcar sentado no chão com o vovô. O cheiro dos vidros de perfume e do pompomzão de talco expostos cuidadosamente na pia do banheiro, serviram para me contar sobre quem eram os meus avós. Quando os dois se foram em 2018, nossa vida estava uma bagunça com meu pai em tratamento de uma doença grave. Eu nem pude sentir direito ou me envolver com detalhes práticos, como a casa, seus objetos, a história deixada pra trás. Sei que algum tempo depois, chegou até mim esse quadro, meus tios decidiram que ele seria meu. Difícil segurar a emoção porque ele me transporta diretamente para essa casa da minha infância que me fez tão bem. Gosto de pensar que ele é um item que se encaixa nos objetos de olhar para fora e também dos de olhar para dentro. Ele me fala de paisagens distantes a serem descobertas e essas cores e a linha de lã sintetizam minha avó nas coisas que ela gostava de fazer e no estilo próprio que conseguia imprimir em tudo que falava, fazia e escolhia.