-
Outros tempos
- Voltar
Documento
Metadados
Miniatura

Nº de Registro
MCB_5_0638
Título
Outros tempos
Narrativa
O meu lance com ampulhetas começou durante a graduação em História. É que as ampulhetas são um dos símbolos do curso, então é bastante comum que imagens desse objeto estejam estampadas em artigos destinados aos acadêmicos de História. Eram outros tempos obviamente, em que ir à faculdade e encontrar os amigos do curso eram coisas possíveis. Já no início da graduação, inebriada pela empolgação característica dos inícios, tinha certeza de querer tatuar uma ampulheta em algum lugar do corpo, pois era preciso demonstrar ao mundo meu apreço por aquela ciência que começava a conhecer mais profundamente Pois bem, lá se vão sete anos de formada e ainda não fiz a tal tatuagem. Mas sigo desejando fazê-la. Além da tatuagem, é claro, eu queria comprar uma ampulheta. Mas era difícil encontrar em algum comércio comum da cidade, e naquela época as compras pela internet não eram ainda tão disseminadas, de modo que, após formada, por um tempo, esqueci do desejo de adquirir o objeto. Foi somente em 2016, durante uma viagem para Maceió, em Alagoas, num tempo em que viajar era coisa que ainda se fazia, que pude finalmente satisfazer o desejo de ter uma ampulheta. Enquanto caminhava numa daquelas feiras típicas de cidades turísticas, em que artesãos locais comercializam suas artes, procurando por qualquer coisa que pudesse trazer para casa como lembrança da viagem, me deparei com diversas ampulhetas expostas na entrada de uma das lojinhas. De imediato, decidi que minha lembrança daquela viagem seria a ampulheta. Depois de uma breve indecisão quanto a qual cor escolher (o objeto estava disponível em várias colorações: rosa, amarela, verde, azul, enfim o arco-íris todo), finalmente comprei minha ampulheta. Voltamos eu e minha ampulheta amarela para Foz do Iguaçu. Chegando em casa, como de costume, demorei meses para desfazer totalmente minha mala, e já nem lembrava da ampulheta. Quando, por fim, a resgatei de dentro da mala, ela foi direto para o guarda-roupa. E por muito tempo aí permaneceu, esquecida no meio das roupas e demais quinquilharias que formam a assustadora confusão do meu guarda-roupa. Assim, a ampulheta esteve aí até meados de março desse ano, e então veio o isolamento ao qual o Covid-19 nos obrigou. Queria poder dizer que, assim como muitas pessoas, decidi “botar a casa em ordem” nos primeiros dias da quarentena, e que então, a partir dessa arrumação, encontrei a ampulheta. Mas não foi assim, o mundo como o conhecemos está prestes a acabar, portanto, às favas com a limpeza. Encontrei a ampulheta por acaso e, passados quase quatro anos de sua aquisição, finalmente decidi a expor em uma das prateleiras da minha sala. Então, desde que a coloquei na prateleira, tem acontecido de que, não raro, ela me recorde o quanto erramos enquanto humanidade e o quanto desperdiçamos de tempo com coisas sem a menor importância, sem o menor o significado para nossa existência. E agora, justamente agora, que a humanidade parece não ter mais muito tempo, esse objeto ganhou um outro sentido para mim. Na iminência de não ter mais tempo, penso agora o quanto temos medido nosso tempo de forma equivocada. Espero que em tempos vindouros, minha ampulheta seja apenas símbolo de um período difícil em que ficávamos em casa esperando e torcendo para ainda haver futuro. E nesse tempo outro, nesse tempo ainda porvir, que eu possa, também, olhar esse objeto e vê-lo como signo de um tempo que, felizmente, quem sabe, já terá ficado para trás.
Descrição de Imagem
Ampulheta de vidro transparente com as bases de madeira, possui areia na cor amarela.
Categoria
Doador
Francielie Moretti